31 de mar. de 2019

1969, o ano em que descobri Goiás

O centro de Goiânia visto da Praça Universitária, 1969
Goiânia, 1969. A cidade tinha 300 mil habitantes e qualidade de vida. Íris Rezende era o prefeito. Ruas limpas. Nas calçadas, havia um cesto de lixo a cada 20 metros. Ai de quem jogasse papel ou qualquer coisa na rua. Os próprios goianienses fiscalizavam. Íris cultivou em cada um o "eu amo Goiânia". 

Vindo de São Paulo, cheguei à cidade um pouco antes de o General-presidente Artur da Costa e Silva editar, em 26 de fevereiro, o Ato Institucional 07. O chamado AI-7 suspendia as eleições para governador e prefeito. 

Goiânia eis-me aqui. A minha meta primeira era trabalhar na Rádio Brasil Central. Eu a ouvia diariamente. Eram possantes as suas ondas curtas e tropical, de alcance mundial. E com fé em Deus e transpirando ansiedade, lá fui eu para a Vila Nova, onde ficavam os seus estúdios. Coração batendo ao ritmo da nervosa expectativa e da emoção. 

Subi as escadas. Recebeu-me Gonçalves Lima, redator e plantão esportivo da Equipe ABC, comandada por Baltazar de Castro. O "Gonça" foi o meu primeiro amigo. Cheguei sem emprego e sem nada. Ele me deu cama e comida e isso não há dinheiro que pague. Creio que estará lendo essas linhas. Receba por elas, meu amigo, mais uma vez, a minha eterna gratidão. 

Como não conheciam o meu trabalho, foi com ele, e também com o saudoso e grande amigo Caetano Beghelli, que apresentei alguns programas esportivos. Sempre otimista, estava certo de que ali ficaria. Alegria efêmera. "Você é muito bom, Bordoni, mas não tenho verba para contratá-lo. Sinto muito"- disse-me Baltazar, outra alma boníssima e que muito fez por Goiás.

O não foi um baque. No futebol, diríamos que joguei bem, mas não fui convocado. Frustrei-me por não realizar o meu "sonho RBC", mas o Gonça me convenceu a ficar, que persistisse, pois outras chances viriam. E tal se deu. Foi ele quem me indicou ao Draulas Vaz. Começava ali o meu amor por Goiás.  
Draulas Vaz

Draulas comandava as áreas de esportes dos Diários Associados: a Equipe 1.320, na Rádio Clube (hoje, Sagres 730), a programação esportiva da TV Goiânia (hoje, Goyá/Record) e a editoria de esportes da Folha de Goiaz.

A Folha foi o primeiro jornal goiano a usar a impressão fria (offset), aposentando os tipos gráficos ainda em uso, à época, pelo O Popular.  Luiz de Carvalho, editor-chefe. Na redação, Altamir Vieira (chefe de reportagem), Raul de Assis, José Domingos de Brito, Sebastião Campos, David Araújo et alii. O amigo Wilson Silvestre, com quem também trabalhei no Diário da Manhã, chefiava a diagramação.

José de Oliveira dirigia a Rádio Clube. Eu produzia os programas de esportes - A Bola é Nossa, às 11h30, e A Bola Continua Conosco, às 18h30. José Calazans, hoje na RBC, dividia comigo a apresentação. Na verdade, eu fazia de tudo. Narrava, comentava, fazia reportagens.   

A Equipe 1.320 era um time de primeira. Habib Issa, Jadir Santos, Calazans e Manoel de Oliveira eram os narradores. Além do Draulas, tínhamos os comentaristas Carlos Alberto Sáfadi (fomos juntos para a Folha de S.Paulo), Amir Sabag e Nei Fernandes (Nei que fora técnico campeão com o Goiânia, em 1968, timaço com os fantásticos Chico, Silvinho e Tuíra no meio de campo). 

Os nossos repórteres eram Levy de Assis, Edson Costa, Ezer de Mello e o então iniciante e hoje consagrado comentarista, Evandro Gomes, que, à época, também trabalhava na Casa Carajá, vendendo materiais de caça e pesca. O professor Reid Duarte cuidava do nosso plantão esportivo.


Levi de Assis
TV Goiânia, emissora da Rede Tupi. Iniciei ali o meu aprendizado em televisão. Passei a apresentar "O 4 é Bom de Bola". Lia as notícias e o Draulas as comentava. Os Diários Associados ficavam na Avenida Goiás, entre a 1 a 2, onde hoje temos uma agência da Caixa Federal. 

Bem em frente ao prédio havia um recuo acentuado da calçada - a chamada Pracinha dos Diários, de onde eu transmitia lutas de boxe, promovidas pelo Hugo Nakamura, e, também o "telecatch" - as lutas livres da TV Excelsior do Rio, trazidas para cá por Luiz Ricci, nosso diretor comercial. O público se acotovelava. Havia crianças demais.  Todos queiram ver os famosos Ted Boy Marino, Fantomas, Gran Caruso, Homem Montanha, Índio, La Múmia, Moretto, Tigre Paraguaio e mais duas dezenas de lutadores.

Alberto Poli era o nosso diretor artístico. Foi ótima a minha escola. Graças às lições do Luiz Carlos Santos, o Lulu, mais tarde diretor comercial da TV Goyá e Record, e do Gregório Camargo, câmeras de primeira grandeza, eu aprendi a lidar com essa caixinha cheia de fios e telas. 

Com tais mestres, em julho, usando um link de fabricação caseira (saudade de José Carneiro Pimenta), transmitimos jogos de futebol, futebol de salão, voleibol, basquete e provas de atletismo e natação, nos XX Jogos Universitários Brasileiros, sediados em Goiânia. Também fizemos ao vivo, em 12 de julho, a inauguração da Praça Universitária. Tempo em que César Sebba era a nossa estrela maior na bola-ao-cesto e que teve lugar merecido na seleção nacional. 


1969, ano em que o Vila, com 26 pontos, foi campeão. CRAC o vice, com 25 pontos e seu centroavante Toninho Índio o artilheiro, com 14 gols. Goiás, o terceiro. Atlético, o sexto e o meu Goiânia, campeão do ano anterior, em sétimo. 
   
Zuenir Ventura diz, em livro, que 1968 foi o ano que não terminou. 1969 não foi um ano qualquer. Os militares, que haviam tomado o poder, em 1964, endureciam o jogo. E o arrocho foi muito maior a partir de 31 de agosto, após o afastamento do presidente Costa e Silva, seriamente adoentado. Com o vazio do cargo, assume o comando do país uma junta governativa formada pelos ministros do Exército (Lira Tavares), Marinha (Augusto Rademaker) e Aeronáutica (Mário Souza Mello) - um trio, verdadeiramente, parada dura. 

18 de setembro, após os movimentos de esquerda terem sequestrado o embaixador estadunidense no Brasil, Charles Elbrick, a Junta, em repressão total aos opositores ao regime, cria a rigorosa Lei de Segurança Nacional. Em 15 de outubro, edita o Ato Institucional 16, reabrindo o Congresso Nacional e promulgando, dois dias depois, uma nova Constituição.


Nesse ínterim, Goiânia vivia a efervescência dos movimentos estudantis, que fizeram da Praça Universitária o seu centro de resistência. Embora nunca tenha insuflado qualquer ação antagônica, o prefeito Íris Rezende preocupava os militares com o seu carisma e liderança. Às sextas, ele ia à TV e pedia aos goianienses participação nos seus mutirões. Milhares acorriam aos seus chamados. 

Ante o prenúncio da volta das eleições diretas para os governos estaduais, em 1970, o "homem dos mutirões" estava em campanha aberta para governador. "Bom pra 70" era o seu slogan. Sonho abortado. Em 20 de outubro, dois dias antes de inaugurar o Parque Mutirama e a quatro dias do aniversário da Capital, Íris Rezende é cassado. A cidade chorou. 

Nomeado prefeito de Goiânia, Leonino Caiado começa por mandar perdoar multas e correções monetárias de contribuintes inadimplentes e, também, da salgada taxa de pavimentação asfáltica que os goianienses tinham que pagar a bancos privados, que haviam financiado as obras. 

24 de outubro. Goiânia faz aniversário. No dia seguinte, o general Emílio Garrastazu é guindado à Presidência da República. Dez dias depois, Carlos Marighella, líder da Aliança Libertadora Nacional, é morto a tiros por agentes do DOPS, em São Paulo. O ano termina com uma nota de alegria. Em 19 de novembro, Pelé marcava o seu milésimo gol, na vitória do Santos sobre o Vasco da Gama, por 2 a 1, no Maracanã. 


Ledes Gonçalves
Nessa época, eu também apresentava com Ribeiro Júnior, Folha de Goiaz na TV, telejornal que, durante bom tempo, teve a comandá-lo, na bancada, os queridos amigos Ledes Gonçalvez e Glória Drummond. Só falávamos amenidades. Não havia matérias sonoras, só filmes negativos mudos. O único ditador em que podíamos bater, sem medo da censura ou da polícia, era Nicolae Ceausescu, o terror da Romênia e inspirador de Hitler.

Apesar de todos os medos e apreensões, Goiânia, em 1969, era uma cidade maravilhosa, bem cuidada, mais gente do que carros, gostosa para se viver. Ventos, sol e flores e onde a primavera tinha doze meses.     

P.S. - Aplauso. O presidente Jair Bolsonaro desiste de transferir embaixada brasileira para Jerusalém e, no lugar, abre um escritório para promoção do comércio, investimento, tecnologia e inovação. Em compensação, insiste em quebrar tradição diplomática e visitará o Muro das Lamentações com Netanyahu. Que depois não lamente se perder o forte mercado árabe, um dos maiores importadores de produtos brasileiros, acentuadamente bem maior do que Israel.